Leiam este texto do Joaquim do Santos, do site NO.com, quem eu amigo Lacaio enviou p/ mim.
Já que os Simpsons foram (muito bem) lembrados...
Carioca da gema
07.Dez.2002 | É tudo verdade, meu caro Matt Goening. Não se impressione com esse papo de que você e sua valorosa equipe estão denegrindo a imagem da cidade com a viagem dos Simpsons ao Rio (Feitiço de Lisa, domingo, dia 8, 20h30, na Fox). Orson Welles também andou por aqui filmando o 'É tudo verdade'. Fracassou. Deveria ser um documentário, mas era tudo mentira. Quis dar um sentido heróico aos batuqueiros da Praça 11, aos jangadeiros cearenses. Acabou com os primeiros, matou os segundos. Tudo papo furado, sociologia de culpa barata. Política da má vizinhança. Não somos heróis coisa nenhuma. Fracos, bêbados, desocupados, bandidos, sexualidade cômica, eis o perfil da cariocada que vocês mostram nos Simpson. Sabem de uma coisa? É por aí. Não dá para generalizar, claro, mas quem fez a pesquisa sabe das coisas. Vocês fizeram, meus caros, um desenho animado e a princípio deveria ser tudo mentira. Mas não. Tudo verdade. Qualquer pessoa que more na rua Maria Angélica, por exemplo, no Jardim Botânico, e eu morei anos lá, sabe que os macacos invadem os apartamentos atrás de bananas. Não têm nada de graçola. São perigosos em bando – e eu já tive uma vizinha atacada por eles na cozinha. Vocês colocaram no filme uns macacos correndo atrás de um pobre menino. As autoridades chiaram. Deixa pra lá. Eles não sabem da missa a metade. Todos da Silva. Ignorantes da selva.
Como é que você soube dessas coisas, meu caro Matt? A Lisa aparece no avião lendo um falso guia de viagem, que parece ter sido chupado do Lonely Planet. Recomenda, por exemplo, que só se beba água mineral. Eu diria que nem essas, porque também estão cheias de coliformes fecais. Ferva sempre. Mas, em geral, Matt, você está informadíssimo sobre a trapalhada que é isso aqui. O Rio é uma cidade cercada de cronistas por todos os lados, mas esta semana você é o mais arguto deles. Está tudo lá no Feitiço de Lisa. Motorista de táxi pirata, quem já não pegou? Você colocou o nosso Hommer sendo seqüestrado por um e, vou te contar, pegou leve. Há motoristas que não só seqüestram, mas estupram e até matam. A barra é pesada, mas, como você bem reparou, tem muita diversão também. Não sei de onde você tirou aquela idéia de que se vai a qualquer canto da cidade engatado em enormes filas de gente dançando a conga. Deve ter sido da visão de algum trenzinho em baile de carnaval. O que me impressiona é a cariocada nunca ter pensado num troço desses. Faz sentido, é prático, e mais uma oportunidade de rolar uma sacanagenzinha tão ao nosso gosto. O Hommer gruda numa dessas congas, segura o cara da frente pela linha abaixo da cintura, sente uma certa consistência glútea e diz, empolgado, cantando: "Minha mão está na bunda de um cara e esse cara deve malhar."
O programa ficou muito engraçado. Você brinca, meu caro Matt, com a sensualidade do carioca, a mania de cultuar o corpo, essa coisa de estar sempre parecendo ávido por uma grande suruba. Não descobriu nada de novo – é assim mesmo. Há séculos. Pelo menos entre os que acreditam na lenda da carioquice. Um bando de gente malhando o corpo para que esteja em condições de malhar o corpo alheio. Na boa. Sem censura. Pensa-se muito maquilo e, você carinhosamente, curtindo com a nossa cara como só os bons amigos podem fazer, mostra essa pândega pansexual. "Essa música de batuque tira as inibições da gente", fraqueja Margie no carnaval revirando os olhinhos para os bofes. Já no avião, o comandante e o co-piloto formam um casal gay. E o primeiro, com voz fresquíssima, anuncia ao microfone: "Senhores passageiros, no Rio a temperatura está quente, quente, muito quente, com 100% de possibilidade de paixão." Os machões da cidade não vão gostar muito, porque vocês, meu caro Matt e equipe, realçaram muito um clima de cuecão de couro. Do seqüestrador ao guarda-vidas na praia, todos que aparecem em cena, são gays, ou um instantinho machos e noutro instantinho gay. Até as notas do real, por serem rosa e roxo, são consideradas dinheiro de boiola. Mas, sei lá, você deve ter alguma razão para desconfiar desses ambientes de muita afirmação macha. Aquelas sunguinhas que a gente usa na praia, e você botou no Hommer, são realmente esquisitas. Valeu o toque. O Hommer, a propósito, parece em casa. Ele perde o carnaval porque está seqüestrado na floresta amazônica, mas quando sua mulher vê aquela confusão nas ruas, lamenta por ele: "Hommer ia gostar dessa ambigüidade sexual."
Achei, sério, O feitiço de Lisa, carinhoso com o Rio. Somos aquilo mesmo. Um bando de caras desempregados sem ter o que fazer, sentados na calçada vendo a turistada passar. Gostei muito da cena em que uma mulher entretem os Simpsons apenas o tempo necessário para que os filhos dela roubem os turistas pelas costas. É isso aí, Matt. Não existe ingênuos do lado debaixo do Equador. Uma loura quase desnuda, a grande fada madrinha das crianças brasileiras, cruza o filme diversas vezes com pompons nos mamilos (o nome do programa é Telemelões) enquanto suas assistentes de palco esfregam-se nas pilastras do cenário. Meu caro, Matt, só o olho estrangeiro para se espantar com isso. Perfeito. No Rio as louras da televisão ensinam as primeiras letras e as primeiras posições, na mesma aula, sem cortes para o comercial. Estranhíssimo, pornográfico, mas aqui todo mundo acha muito natural. Você fez quase um filme verdade sobre o Rio. As pitadas de nonsense, aqui e ali, são para não perder a marca Simpson. De resto, repito, tudo verdade, ou muito próximo de ser. "É a terra dos contrários, onde o ladrão corre atrás da polícia", define Hommer. Na mosca. Tudo acaba em futebol, como os Simpson viram na recepção do hotel, onde os bellboys fazem as malas de bolas. Já houve prefeito que pintou a favela de cores alegres para dar boa impressão aos turistas. Tá tudo no teu filme, Matt, e não sou eu, cansado de ver essas coisas acontecerem na minha frente, que vou me fazer de freira. A propósito. Genial quando o Hommer se dependura no cangote de uma e tenta voar pela favela atrás do menino que fugiu do Orfanato dos Anjos Imundos, localizado na rua Papaia.
Quando o desenho estreou nos Estados Unidos, um secretário de Turismo do Rio pensou em processar você, Matt, e toda sua equipe por estarem prejudicando a imagem da cidade. Não leve à mal. Apenas mais uma das nossas bobagens. Eu acho até que você poderia fazer como o policial que recebe a Margie na delegacia quando a coitada foi lá reclamar que tinham-lhe seqüestrado o marido. Diga ao secretário o mesmo que o policial disse para a Margie: "Acho que você está a fim de mim." O Feitiço de Lisa debocha dos cariocas, claro, mas no mesmo tom inteligente e por dentro que a turma dos Simpsons usa para esculachar com os americanos. Quem mora por aqui sabe que essas criancinhas nos sinais não são mendigas coisa nenhuma. E você, Matt, meteu bem isso na história. Os Simpsons vêm ao Rio para procurar um certo menino abandonado, Ronaldo. Só que o garoto ficou riquíssimo com as esmolas e uma participação no programa da Xux..., ops, da vedete loura. É Ronaldo quem paga, dentro do bondinho do Pão de Açúcar, o resgate exigido por Hommer, numa cena hilária em que rola até uma Síndrome de Estocolmo. Hommer se apaixona pelos seqüestradores. E vice-versa. "Quem diz não para essa carinha linda", diz um bandido muito gente boa olhando uma foto do Simpson pai.
O Feitiço de Lisa pode ser considerado um retrato amável de uma cidade em que a Polícia Militar sai no braço com a Guarda Municipal e o prefeito, na falta do que fazer, arbitra que o Rei Momo agora será magro. Eu confesso que não conheço nenhum orfanato de solteironas lésbicas, como aparece no desenho, mas, sei lá, ultimamente tenho saído pouco de casa. É possível. Em nome dos cariocas, meu bom Matt e equipe, agradeço não terem ido mais fundo na nossa miséria. Isso aqui é uma esculhambação total, bicho solto para tudo que é lado, todo mundo dançando algum tipo de rumba pelas ruas e com o olho sempre esperto para não ser pego por um táxi pirata. Para enfrentar essas paradas, a galera investe nos tambores, que levam ao sexo e ao bom humor. Obrigado, principalmente, Matt, por ter acabado o filme de um jeito redondo, sem amargor. Ficou o melhor da nossa cara. O Bart é engolido por uma cobra amazônica. Mas lá de dentro ele grita para a família do lado de fora: "Não fiquem tristes, é carnaval". E põe-se a dançar rumba na barriga da jibóia. Você captou o espírito da coisa carioca, meu caro Matt. O bicho pegou. É traficante, bala perdida, desemprego, inflação, dispnéia e suores noturnos. A única coisa a fazer é dançar rumba na barriga da jibóia.
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